Acerca | About

"Carla Maciel e Gonçalo Waddington têm uma extensa carreira de atores no teatro, cinema e televisão. Em 2011, interpretaram o par central de Rosmersholm de Ibsen, estreia de Waddington na encenação; em 2010 tinha-se iniciado na realização com a curta-metragem Nenhum Nome, que Carla protagonizou. A última (e nona) peça da dupla Sofia Dias & Vítor Roriz, Fora de qualquer presente, estreou no alkantara festival deste ano. A anterior, Um gesto que não passa de uma ameaça, recebeu o prémio Jardin d’Europe em 2011. Nomes centrais de uma nova geração da dança portuguesa, trabalham juntos desde 2006."
"At most mere minimum is a creation of the actors Gonçalo Waddington and Carla Maciel, together with the duo composed of the dancers and choreographers Sofia Dias and Vítor Roriz. Carla Maciel and Gonçalo Waddington have already enjoyed an extensive career as actors in theatre, film and television. Sofia Dias and Vítor Roriz (winners of the Jardin d’Europe Prize in 2011) are pivotal names in a new generation of Portuguese dance."

http://www.culturgest.pt/actual/03-25-nacaovalente.html
  

Quatro perguntas (programa da Culturgest):

"1. O título do espetáculo vem de Beckett, um autor bilingue; e os criadores são dois casais, um vindo da dança e outro do teatro. Que importância deram às ideias de desdobramento, duplo ou divisão? 
Este projeto começou com a partilha de referências, aquilo que nos inspira e alimenta artisticamente. Essa partilha foi a forma mais eficaz para nos conhecermos e para começarmos a trabalhar. Beckett destacou-se inevitavelmente do aglomerado de autores e obras, acabando por nos emprestar o título. A ideia de duplicação e desdobramento esteve presente na composição da primeira parte do espetáculo, onde introduzimos uma série de camadas (sonora, textual e física/corporal) que parecem permitir reinterpretar constantemente cada situação.
A ideia de divisão pode ser associada à alternância de língua e ao intervalo entre cada fala. Para além disto, houve também uma aproximação à noção de conjunto, sustentada pela ideia de que cada um de nós pode ser o outro, criando uma paisagem comum onde o sujeito, sem perder a sua individualidade, se pode desdobrar/multiplicar ou substituir a qualquer momento.

2. O que ficou de Nação Valente!, o projeto inicial? O processo de trabalho foi de depuração, abstração ou mera substituição desta primeira proposta?
O projeto inicial Nação Valente! propunha uma reflexão (com muita ironia) sobre a atual situação política, económica e social. Era um ponto de partida para o trabalho, mas logo no primeiro dia de ensaios percebemos que seria demasiado condicionante. Daí que o processo tenha sido claramente de substituição. A substituição de uma ideia ou de um tema pela potência do encontro entre os quatro. Um encontro que é permeável ao contexto atual mas que não precisa de tornar essa ligação óbvia. Abandonada essa ideia, permitimo-nos mergulhar num processo de partilha, pesquisa e improvisação com base em vontades, interesses e dissonâncias. Procurámos um método que não dependesse da transposição para cena de um tema, mas da descoberta de matéria que o encontro entre estas quatro pessoas, carregadas de experiências e vivências muito diversificadas, poderia revelar. Esta pesquisa sem um tema orientador pareceu-nos muito mais pertinente e ousada.

3. Uma palavra-chave para esta peça poderia ser “articulação”: descreve tanto as propriedades do ser (marioneta? autómato?) de que se fala na primeira parte como os jogos fonéticos da segunda. De que forma este trabalho se articula com preocupações vossas em peças anteriores?
Na primeira parte o corpo é exposto a uma tensão entre sujeito e objeto, entre um sujeito que, ao automatizar-se, pode ganhar algumas qualidades de objeto e vice-versa. Na segunda parte, o que antes estava controlado descontrola-se e o sentido da palavra que antes carregava uma espécie de subtexto passa a ser um jogo irónico de utilização das palavras numa aproximação mais primordial. Já em trabalhos anteriores de Sofia e Vítor tinha sido explorada a palavra formalmente, na sua dimensão fonética e semântica. Mas aqui, o jogo aponta para uma direção mais absurda e irónica onde, a par da ação, as palavras vão criando um estado de entusiasmo entre os quatro.
Enquanto que para a Carla se trata de uma nova experiência, no caso do Gonçalo esse jogo de fonética e semântica foi amplamente experimentado em textos do Miguel Castro Caldas, em que uma ou mais palavras estão em constante mutação pela sua repetição incessante ou pela sua recorrência em diferentes contextos.
Para a Carla e o Gonçalo, a articulação do corpo como veículo principal de comunicação é uma descoberta. O corpo sempre foi uma extensão da palavra. Algo que poderá sublinhar o que é dito ou dar informações contraditórias. Mas sempre como extensão, não como princípio. Neste trabalho há uma componente de texto que lhes é familiar, pela importância que tem num determinado momento. Depois, há a palavra como camada meramente formal, que se memoriza como um movimento ou marcação, e o corpo comunicante, o que, apesar de ser uma evidência, para alguns atores de teatro é por vezes inexistente.

4. O espaço que construíram é uma mistura de laboratório científico e atelier de artista; o que vos interessou nestes dois universos? 
Parece-nos haver entre a ciência e a arte um ponto em comum que é o da experimentação associada ao deslumbramento (um qualquer estado de “eureka” constante).
Quando começámos a trabalhar trouxemos muitos objetos, não na expectativa de os usar em cena, mas talvez para nos dar uma sensação de segurança ou autonomia: aqui temos tudo aquilo de que precisamos para trabalhar. Esta acumulação de objetos úteis e inúteis acabou por nos informar sobre muitas das direções do espetáculo. No laboratório todos os objetos têm uma função específica (embora incompreensível para o comum dos mortais); no atelier, os objetos parecem ter essa qualidade de não sei o que vou fazer contigo mas pode ser que venhas a ser útil. No espetáculo interessa-nos a oscilação entre esses dois espaços e uma atitude analítica ou científica na relação com o objeto e o próprio corpo, redimensionando a sua presença. Para além disso, como o espaço cénico é quase uma transposição do nosso espaço de trabalho, parece-nos evidente uma tentativa de continuidade ou aproximação entre o processo e o resultado."



A tradução que é o original

Tiago Rodrigues*

Cristalizar o primeiro olhar que lançamos sobre alguém ou alguma coisa é compor um hino aos acidentes que marcam a vida. É um exercício de memória que homenageia a ideia de “momento". Qual o lugar dos objectos e das suas sombras, animadas pela luz que sobre eles incidia naquele momento? Quais os sons próximos e longínquos que contribuíam para a banda sonora sem partitura daquele momento? Quais os odores, essa poderosa linguagem invisível, que nos interpelam
quando recordamos aquele momento?  

Ainda que empreguemos rigor científico neste trabalho de memória, o que cristalizamos é sempre uma versão pessoal dos acontecimentos e uma representação de nós mesmos. Quando Montaigne nos diz que “saber de cor não é saber, mas guardar o que escolhemos reter na memória”, denuncia o que há de mais poderoso na missão de reconstituir o passado: a interpretação, a imensidão de escolhas premeditadas e acidentais que transformam a coisa vivida em coisa lembrada. Mais que lembrada, memorizada. Sabida de cor.  
Acerca disto, o crítico George Steiner avisa que a “expressão é vital”, distinguindo o acto de memorizar par coeur ou by heart daquele de memorizar by brain. Quando escolhe a palavra “expressão”, que insinua a exteriorização da memória, em vez da palavra “impressão”, mais próxima da ideia de “guardar” em Montaigne, Steiner alude a uma memorização que serve, desde logo, uma narrativa futura. Ao defender que o maior tributo que se pode prestar a uma obra literária é aprendê-la de cor, inclui a acção futura de dizer a palavra no gesto precedente de a memorizar. O actor já representa no momento em que decora o texto e o bailarino já dança quando ainda aprende a repetir o gesto.  
O que Carla Maciel, Gonçalo Waddington, Sofia Dias e Vítor Roriz fazem em At most mere minimum não é apenas uma memória do seu encontro e colaboração artística. É memorização. Retalhando o momento do encontro, que intuímos serem as primeiras sessões de trabalho numa sala de ensaios, os quatro criadores-intérpretes ampliam fragmentos e examinam partículas do passado. Fazem-no, conscientes de que a revisitação desse tempo em que o espectáculo ainda não tinha forma, em que tudo era ainda possível, se assume como a forma do próprio espectáculo. Este fascínio pelo pormenor sustenta a ideia de que é missão impossível tentar reconstruir o momento original do encontro na sua inteireza. Ao fazerem zoom in em certas partes desse momento, os quatro criadores-intérpretes repetem palavras e gestos a partir de diferentes pontos de vista. Não tentam compor o puzzle inteiro, mas criar algo ainda maior através da memorização (sempre subjectiva e criativa) de apenas algumas das suas peças. Nesta memorização, está também presente uma estratégia fundamental que atravessa cada minuto de At most mere minimum: o passado é tratado como linguagem.  
Aquilo que Maciel, Waddington, Dias e Roriz analisam sob a sua lupa artística não é verdadeiramente o momento do seu encontro na pré-história deste processo artístico. Ao decidirem usar o seu encontro como a matéria prima do espectáculo que daí resultará, os quatro artistas passam a abordar o seu passado comum como linguagem que pode ser memorizada, duplicada, transformada. Os fragmentos que escolhem explorar em cena não são já simplesmente coisas que se passaram nos primeiros dias de ensaios, mas palavras, gestos, objectos e imagens que são tratados como vocabulário. O combustível desta obra é a representação do encontro e não o próprio encontro. E é nesta estratégia que At most mere minimum
se assume enquanto pesquisa artística que ultrapassa os limites familiares do autorreferencial nas artes performativas. Ao explorarem microscopicamente os detalhes da sua experiência, os quatro artistas amplificam e universalizam o seu caso individual, porque concentram todos os seus esforços em tentar descobrir “como” falar do encontro em vez de tentarem realmente falar dele. Vão assim ao encontro de Arundhati Roy, a romancista que acredita que o que nos faz reler as grandes histórias não é “o que acontece”, mas “como” acontece – a linguagem que representa o acontecimento e não o acontecimento em si. Nós já sabemos que o herói morre no fim. Queremos recordar como. Queremos memorizar o momento.  

O linguista Noam Chomsky defende uma visão da linguagem enquanto processo de “criação livre” em constante fricção com os princípios fixos que a regem. Essa fricção é o que anima o espectáculo criado por Maciel, Waddington, Dias e Roriz. Muito mais do que debruçar-se sobre o processo de montagem do espectáculo, este quarteto digere e regurgita a linguagem do encontro de artistas. Numa primeira parte do espectáculo, mais metódica e silenciosa, parece estudar o seu objecto com ciência e precaução. Num segundo andamento da peça, mais lúdico e jubilatório, aceita a sua natureza de expedição aventureira pelo continente da linguagem. Mergulha, corajosamente, nesse território ambíguo em que “a linguagem é uma pele”, como escreve o linguista e crítico literário Roland Barthes, o mesmo que dizia que tinha palavras em vez de mãos e que tinha dedos nas pontas das palavras. 
Enquanto assistimos a At most mere minimum, dilui-se a importância desse encontro passado que deu origem a tudo e o essencial passa a ser o próprio acto de memorizar que acontece no tempo presente da performance. Maciel, Waddington, Dias e Roriz são um romancista que rescreve a sua obra antes mesmo de a escrever. Ou um escritor que inclui a tradução na escrita do original. E o uso do termo “tradução” é talvez, aqui, o mais indicado. Mais do que tentar um discurso de múltiplas interpretações, a aposta é numa escrita bilingue para o palco. Bilingue no sentido de ser o original e a sua tradução. Bilingue também porque junta duas duplas provenientes de áreas da criação diferentes: Carla Maciel e Gonçalo Waddington do teatro versus Sofia Dias e Vítor Roriz da dança. Bilingue ainda na iconografia do espectáculo, habitado por dois pares de gémeos na imagem e no movimento. Bilingue até no sentido mais literal, com breves textos ditos em português e inglês, repetidos em circunstâncias diferentes e revelando significados paralelos. Aliás, não é inocente, como já salientava o programa da estreia deste trabalho na Culturgest, que o título At most mere minimum seja emprestado de Samuel Beckett, também ele autor bilingue. 
Seja numa atitude mais mecânica que está muito presente na primeira parte do espectáculo, seja na exaustão irónica dessa lógica na segunda metade, a dinâmica bilingue é a trave-mestra deste edifício. Até o espaço em que decorre o espectáculo é bilingue: mistura de laboratório científico e estúdio artístico, apontando a ideia de pesquisa experimental como lugar comum da ciência e das artes. Ocupado por ferramentas de trabalho do cientista-artista e por outros objectos cuja utilidade é menos evidente, este espaço permite uma deriva crescente no espectáculo. Tal como em Marcel Proust o esforço de recordação se transforma em longas digressões de memória involuntária, onde reside aquilo que o filósofo Gilles Deleuze apelidou de “procura da verdade”, também aqui esse caminho labiríntico acaba por tornar- se a poética do espectáculo. E é ao enredar-nos nessa poética e fazer-nos desistir de ver o retrato do verdadeiro encontro, que um outro encontro acontece perante os nossos olhos. Como “o novo que sempre esteve lá” se revela numa tradução sublime. 
Carla Maciel, Gonçalo Waddington, Sofia Dias e Vítor Roriz criam um espectáculo que sabe que usarmos as mesmas palavras não é o suficiente para nos entendermos. É necessário, tal como acredita Nietzsche, dar os mesmos nomes às mesmas experiências interiores e, para isso, é preciso viver essas experiências em conjunto em palco, a cada apresentação. E descobrir que cada palavra, cada gesto, cada som que se cria para o palco nasce ao mesmo tempo que o seu gémeo, a sua sombra, a sua tradução.

*Dramaturgo e actor, director artístico do Mundo Perfeito